Cheguei cansada e abri a porta. Joguei o que carregava por cima da cama. E então a notei. Lá estava ela: entretida, preocupada e enxerida. Mexendo no meu armário.
Era notável seu estado afoito; sua pressa e quase desespero em conseguir o que queria. Desde quando a vi eu sabia, ela queria te levar.
-O que está fazendo? - perguntei ainda em choque. Nosso tratado implícito de amizade não incluía invadir a minha casa e revirar o meu armário.
Foi quando ela me notou. Deixou que seus braços caíssem ao longo do corpo, respirou fundo e virou-se para a porta da qual eu ainda não conseguira desencostar.
Seus olhos refletiam sua preocupação, e antes que abrisse a boca, ela voltou-se para o armário, para revirar mais uma gaveta.
-Você sabe que não pode ser assim. Sabe que não lhe faz bem.
Por Deus, o que ela sabia?
-Você não sabe o que diz, além do mais, mesmo que me fizesse mal, ninguém lhe deu permissão para estar aqui.
-Pouco importa, eu não vou deixar que as coisas continuem como estão. Você precisa voltar a viver.
Naquele momento eu percebi que não conseguia me mover, e tudo o que eu queria era tirá-la dalí. Fechar as portas, mesmo com o armário desarrumado. Apenas esquecê-lo. Porém, a única parte de meu corpo sobre a qual eu tinha controle eram meus olhos, que pouco a pouco se arregalaram, ao vê-la na ponta dos pés, de braços esticados, tentando alcançar a última prateleira.
Lá, a caixa de sapatos já empoeirada chamava atenção pelo embrulho de presente. Tudo que eu queria é que ela não a tivesse visto. Ainda restava uma esperança, que se desfez lenta e dolorosamente em segundos.
Aquela era a prova da qual ela precisava. Da minha insanidade, da minha incapacidade em deixar o tempo passar. Da minha incoerência.
Com a caixa nas mãos e os olhos na caixa, ela pôs os pés no chão, e logo seu corpo todo estava alí. Ela sentara no chão. Com a bela caixa nas mãos.
Foi quando eu percebi há quanto tempo tinha esquecido de respirar. Meu peito foi invadido pela dor e eu puxei todo o ar que consegui. Voltei a respirar normalmente, e então, me apoiando na parede, sentei-me no chão diante dela, sem tirar os olhos da caixa.
A menina me lançou um olhar rápido, e então abriu minha condenação. Eu sabia que ouviria muitos sermões por causa daquilo, e já era tarde. Que fosse.
Pouco a pouco, ela tirou objetos aparentemente desconexos, sem sentido, de dentro da caixa: um peão de brinquedo, uma bonequinha de cartolina, fotografias, moedas, flores secas, papeis de bala, entradas de cinema, bilhetes e fios de lã. Tudo isso e mais um pouco.
Depois de um momento de contemplação, ela voltou seu rosto para mim, por mais que eu não tenha tirado o rosto da caixa para poder olhá-la.
Suas sobrancelhas arqueadas, me perguntavam com curiosidade o que era tudo aquilo. Porém, seus olhos não refletiam tal curiosidade. Seus olhos tinham medo da resposta.
E eu não respondi. Assim como você, ela já deduzira que aquelas eram minhas memórias. Ela só queria uma confirmação verbal. Pois ela não a teria.
Suas mãos percorriam a caixa, e foi quando ela fez a coisa mais cruel que poderia ter feito: identificou um pedaço teu. Os dedos deslizavam pelo papel, onde rabiscos revelavam que aquilo um dia te pertenceu.
Eu a encarei suplicante, enquanto ela me olhava com pena, quase sentindo minha dor. Afagou meu rosto e levantou-se, segurando-te nas mãos. Ela já estava de costas para mim quando resolveu falar.
-Acredite, é para o seu bem.
E ela te levou embora. Para ela, o último pedaço. Para ela, a parte que sobrou. Fechou a porta e se foi.
Eu continuei alí, sentada no chão, me concentrando em respirar. Puxei a caixa pra perto de mim, e vi quanto de você ela não soubera identificar. Quantos papéis e pequenas coisas não lhe faziam sentido como fizeram pra mim. Ela não percebeu o pequeno grande mundo, que pouco a pouco eu lhe atribui.
Pouco importa a pequena parte que a menina levou. Eu ainda tinha outros pedaços de você. E que ela levasse tudo. Todas minhas memórias físicas. Todas minhas realidades e todas minhas mentiras.
Nenhuma prova física do teu amor já inexistente que ela levasse, o tiraria de mim. Porque eu te puis em outra caixa, muito mais bem guardada, quando meus lábios te disseram que sim.
E essa ninguém encontra. Muita gente a toca, mas ninguém a leva. Em minha alma, você vive por inteiro. Nas batidas do meu coração, teu nome ecoa mais alto em meio a tantos outros.
E isso ninguém tira de mim. Nem ela, nem você, nem eu, nem o tempo.