24 de dez. de 2013

Até aqui

Você me ensinou a receita do melhor strognoff do mundo. Eu te apresentei seu escritor espanhol favorito. Você me apresentou algumas bandas de metal - aquelas que eu nunca teria coragem de ouvir sozinha e agora ouço toda semana. Eu bati na mesma tecla até que você admitisse que gostava de Engenheiros do Hawaii.
Você disse que eu era linda. Eu disse que você era bom. Até que acreditássemos. Ambos.
Você disse que me amava e eu só pude perder o ar. E retribuir. Você disse que queria um filho. E eu disse não.
Eu disse que tinha algo pra te contar, e então instaurou-se o caos. Você disse não. Eu disse não. Sim. O mundo, a vida, disse sim. Não, você disse. Eu disse sim. Fui forte. Eu disse adeus. Fica, você disse. Você disse sim. E tão rápido quanto foi instaurado, o caos se desfez. Era não.
Você pediu perdão. Você me ensinou que não havia problema em chorar, e que forte é aquele que não tem vergonha de mostrar-se frágil. Eu enfraqueci. E teus braços apertaram-se ao redor dos meus. Aprendemos juntos. Os próprios gostos. O que fazia o meu nariz formigar. Qual era a melhor forma de levantar sem que você acordasse.
Eu tive ciúme. Você não viu. Eu te paguei um hambúrguer e você me deu flores. Tornei-me pequena. Você cresceu. O maior homem que eu já conheci.
Algo mudou. Um tropeço. Você disse tchau.
Em caminhos paralelos, nossos olhos nunca se perderam. Você nunca me deixou cair.
Você nunca me deixou cair.
Eu te ensinei a dançar. Você riu. Eu também.
Teus braços encontraram outros. Não que isso importe. Continuamos. Ao alcance um do outro. Em nossos corações, é claro.

30 de out. de 2013

Personas

Era palhaço e por isso vivia em antagonia. Como se a própria tristeza fosse um pecado, ou uma doença a ser combatida à qualquer custo. Deixava-a calada, do lado de dentro, onde achou que ninguém deveria entrar.
Trabalhava duro, de sorriso imposto; mas os olhos, ainda que brilhantes, traziam a tona aquele conflito estranho. Que ele, logo ele, que sempre viveu das próprias escolhas, imaginou que jamais ia encarar.
Como artista, não era rico. Mas não era pobre como a maioria gostava de julgar.
Depois do trabalho, atirou-se no sofá um tanto inerte, assistindo aos flashes de luz azul advindos da televisão enquanto planejava, malandro, uma grande fuga.
Dois meses depois, não estava mais na praça. Para trás, não ficaram mulher nem filhos. Maravilha não tinha nem um cachorro pra deixar para trás. Maravilha achava que a vida era dura e que ser palhaço era um favor social que vinha cobrando o preço de sua própria alegria.
Não mais. Caminhando pelas ruas sem nome de uma cidade igualmente anônima da Argentina, Augusto não era palhaço de ninguém. Augusto podia ser triste. Augusto podia andar de terno e gravata e dizer cursar administração de empresas. Pela primeira vez em muito tempo, Augusto era Augusto e isso não importava para mais ninguém. Ou talvez importasse para Beatriz.
Beatriz era funcionária exemplar. Funcionária do mês daquela rede de farmácias que de tão grande só faltava vender sabão em pó.
Beatriz via Maravilha pelo canto do olho, com certo esforço, enquanto ele fazia rir do outro lado da praça. Beatriz via Augusto todos os dias quando passava a caminho do ônibus e seus olhos se cruzavam, já no fim da tarde. Quando via Augusto, Beatriz pensava em um vaso de flores decorando a mesa de um apartamento onde coubessem os dois e um sofá.
Quando via Beatriz, Augusto pensava no jantar. Já em casa, pensava ser injusto nunca ser visto e que se tivesse um pouco mais de coragem, fugiria de balão. Mas Augusto tinha medo de altura. Foi pra Argentina de ônibus mesmo.
O rendimento de Beatriz caiu. Beatriz agora chegava mais tarde em casa. Passava menos tempo com o cachorro. Aquele que Maravilha não tinha. Não foi mais funcionária do mês.
Augusto acabou voltando. Augusto deu com o apartamento de Maravilha um pouco atulhado e achou melhor fazer uma limpeza por lá. De entrevista marcada numa imobiliária no centro da cidade, Augusto viu Beatriz.
Augusto a viu e pensou numa casa na praia. Onde coubessem os dois e talvez um filho. Talvez um cachorro no quintal.
Beatriz passou por Augusto. Não pensou em nada que valha a pena contar.

27 de set. de 2013

Não

Há coisas que você não pode pedir à uma mulher. O silêncio é uma delas. Ainda mais a mim. Eu, tão dada à palavras.
E enquanto eu expresso minha recusa, teu desejo se sobrepõe.
Vem de dentro, o silêncio. Quase que do meio do peito. Um pouco mais pra esquerda. Envolve-me o coração e é como se de repente eu notasse que ele tem menos espaço pra bater.
Coloco-me na ponta dos pés. Dois dias atrás eu reparei que não sei mais dançar na ponta dos pés. Foi embora o último resquício das aulas de balé.
Por isso mesmo, eu titubeio. Respeito aos teus desejos como se eles fossem justos. Enquanto isso, respondo como bem quero, de lábios cerrados. A voz ecoa na cabeça. Mas hoje eu descobri, querido, que ela passa pelo peito antes de chegar à boca. E ali ela para. Vira sussurro e se dissipa. Como uma mensagem escrita à beira do mar. Como se cada batida do coração fosse uma onda que enfraquece os contornos. E em pouco tempo, é como se nada houvesse ali, em tempo algum.
Eu...
Eu já disse isso antes. Centenas de vezes.
Eu...
Eu acho que dizer isso agora, tornaria as coisas muito dramáticas.
Porque a gente se preocupa demais. Falo de nós. Dois. Não eu e você, ou eu, ou você. Aquela terceira pessoa que surge quando os laços são fortes o suficiente para que da coletividade surja uma personalidade in (e em) comum.

(É importante esclarecer que aqui não existem entrelinhas. Apenas uma mulher em construção, daquelas incapazes de se manter calada.)

8 de set. de 2013

Segunda-feira

Sentada à mesa, em silêncio, eu mastiguei. Ignorando aquele olhar que me engolia. Que esperava respostas. Mastiguei palavras duras, com gosto de massa crua, por causa daquele pão mal assado do café da manhã.
Mastiguei palavras burras enquanto o tiquetaquear do relógio evidenciava que minha resposta já demorava demais. Eu continuei olhando para o pão e pensei que aquela padaria era uma droga. Mas o pão era mais barato que em qualquer outro lugar.
Quem me encarava já era só sombra. Era como se aquele corpo tivesse sido absorvido pela cena. Como quando se acorda no meio da noite e se leva um susto com um invasor no quarto e, em seguida, se percebe que é só uma roupa pendurada no cabideiro. Era como se aquele olhar em agonia fosse só um casaco quase limpo do dia anterior. "É como se você fosse um casaco", pensei. Mas não disse. Aquilo nada tinha a ver com a conversa e seria perfeito pra quebrar o silêncio se aquilo fosse uma história. Mas não era. Aquilo era a vida.
Tomei um gole das palavras com gosto de chá de frutas vermelhas. Doce demais para aquela cena. Se fosse uma história, seria café. Mas eu não tomo café. Nem mesmo em realidades hipotéticas.
Havia algo a ser dito, e então eu sorri. Eu levantei os olhos e sorri aquele sorriso que qualquer um que me conheça bem, já viu mais de uma vez. Aquele sorriso de "eu queria chorar, mas vou sorrir." Que acaba em choro num intervalo de 10 a 100 segundos, dependendo da reação de quem me vê.
Eu ruminei aquelas palavras secas e pesadas, que não cabiam no estômago, nem no coração.
E quem me assistia, não entendeu. Nem o silêncio, nem o sorriso, nem as lágrimas que agora já aqueciam o topo do rosto, mas que não chegariam a rolar pela face.
Quem me assistia, estava inerte e confuso enquanto eu sentia aquelas palavras embrulharem o meu estômago e voltarem à boca. Mas elas não passariam da boca. Aquelas palavras foram engolidas à força, porque elas eram minhas. Era minha aquela dor. Aquela loucura não pertencia à mais ninguém, e assim permaneceria.

22 de ago. de 2013

Reencontro

Era fim de inverno e o frio já não doía mais nos ossos de quem caminhava pela cidade. Por isso mesmo, resolvi voltar andando. Subia pela praça, admirando as cores frias com as quais o último resquício da tarde banhava a cidade. Sacola de pão de um lado, bolsa do outro, os braços não balançavam tão soltos quanto eu gostaria. Mas a mente sim.
Esta divagava sobre o fato de a praça estar praticamente vazia naquele instante. De as pessoas terem tanto medo da violência naquela cidade quase segura e sobre o fato de que talvez, só talvez, a louca fosse eu. Foi quando eu o vi.
Congelei por um instante indeterminado. Ele também parecia estar parado, e isso era bom. Significava que ele também não sabia o que fazer. Talvez. Havia seis ou sete passos entre nós, e ele foi o primeiro a voltar a caminhar. Agora olhando fixamente para mim. Apertei a sacola de pão por entre os dedos, como se isso me desse segurança. Ele já tinha dado dois passos quando eu dei o primeiro. Estávamos agora muito próximos. Ele abriu um sorriso e eu percebi que não conhecia aquela camisa. Depois de tanto tempo, era provável que eu não conhecesse a maior parte do seu guarda-roupas. Sorri também. Meio débil. Meio torta. Odiava encontrar gente na rua. Ainda mais... Agora ele tinha aberto os braços. Sinal claro de que trocaríamos um abraço. Inclinei o corpo para a esquerda, para que ele soubesse para onde inclinar o seu e num instante nossos corpos estavam unidos. A não ser pelas camadas de roupa que impediam que a pele se tocasse de fato.
Ou não. Li uma vez que nunca encostamos em alguém de fato. Coisa de física. Ou de química. Sei lá. Os átomos exercem forças uns sobre os outros e no fim nunca nada (nem ninguém), foi tocado de fato. Achei triste e, durante aquele abraço, uma grande mentira. Não porque ele foi o abraço mais apertado que eu ganhara em tempos (o que ele era), mas porque eu tinha as duas mãos ocupadas e ele foi um tanto quanto desajeitado. Apoiava os pulsos na jaqueta dele pra não deixar nada cair, e então nos separamos.
Ele perguntou o que eu fazia por ali e eu disse que voltava para casa, porque não ia compartilhar aquela baboseira sobre “as cores frias que banhavam a cidade” com ele. Não agora, pelo menos. Ele disse que deveríamos tomar um café. Eu nunca tomei café e ele sabia disso. “Claro”, eu disse, com um sorriso já menos tenso nos lábios.
Entramos numa confeitaria duas ruas depois e ele puxou a cadeira para que eu me sentasse. Talvez fosse só porque eu trazia uma sacola em uma das mãos. O que importa é que ele continuava gentil. Mas eu não pensava isso com idealizações. Era somente uma constatação.
Mal tinha conseguido respirar quando a moça sorridente da confeitaria apareceu de bloquinho na mão. Olhei seus cabelos loiros e brilhantes firmemente presos enquanto pedia um suco de abacaxi.
- E pra comer?
Não sabia se deveria comer alguma coisa. Não sabia quanto tempo aquilo deveria durar. Não queria que ele sentisse que eu o estava segurando ali, ou que eu não queria estar ali e apressava nosso encontro não planejado.
- Traz uma torta de limão, por favor.
Ele pediu um café de fato. Mas não um café normal. Um desses de adulto jovem. Sabor outra coisa que não era café. Batido no liquidificador com creme de alguma coisa. Talvez até licor tivesse dentro desses copos de café moderno. Pediu também um sanduiche natural e eu pensei que ele não combinava com nada daquilo.
Enfim sós. Falei que ainda trabalhava na mesma empresa, mas tinha um cargo diferente. Agora ganhava um pouco mais e o trabalho não era tão legal, mas também não era chato. Que finalmente tomara coragem pra dar entrada naquele apartamento, mesmo achando, lá no fundo, que não ficaria lá por muito tempo.
- Mas e você?
Enquanto ele falava minha atenção se dividia entre coisas demais. A torta estava boa, mas não combinava com o suco de abacaxi. O que eu estava pensando quando fiz aquele pedido? O que ele estava pensando quando comprou essa camisa? Essa camisa também não tinha nada a ver com ele. Talvez ele estivesse diferente. Não parecia. Ele tinha trocado de empresa e agora viajava menos e ganhava mais. Sorri quando ele disse que agora tinha um carro e me entristeci ao saber que o pai dele tinha quebrado uma perna.
- Ao menos ele se machucou jogando tênis, e não subindo uma escada – ele não pareceu entender meu comentário. Não pareceu entender a sorte de se machucar durante o lazer e não durante uma atividade cotidiana.
Ele continuou falando e eu continuei observando aquela cena com certo distanciamento. Ele não tinha uma aliança na mão e eu pensei em quantas mulheres ele havia conhecido naqueles dois anos. Pensei que as mãos dele eram grandes e que ele gesticulava menos agora. Menos do que quando eu o conheci.
-... e eu abri um estúdio.
Aquilo sim me pegou de surpresa.
- Bom, não um estúdio. Agora tenho um quarto pra pintar. Passo umas horas toda semana fazendo alguma coisa lá dentro. Você devia conhecer.
Eu devia mesmo. O primeiro presente que ele tinha me dado era um quadro do sol nascendo em uma lagoa. Feito todo em cores quentes, começava de um vermelho escuro e terminava num amarelo pálido. Apenas o sol e seus reflexos na água. Era lindo.
O quadro ficou na sala por alguns meses, até que começamos a namorar e eu o transferi para o quarto, em frente à cama. Contei que o quadro continuava na parede e depois me arrependi. Certamente, parecia desesperado. Parecia apego demais. Mas ele sorriu. Talvez não houvesse problema nenhum, afinal.
Já havia se passado mais de meia hora e a noite cobria o céu quando ele decidiu que era hora de voltar pra casa. Deixei que ele me acompanhasse até em casa e o convidei para entrar, apenas porque era a coisa certa a fazer. Pensei que o apartamento estava uma bagunça e eu nem mesmo tinha um cachorro no qual colocar a culpa.
Ele recusou o convite. Graças a Deus. Eu tinha que conhecer o estúdio dele. Marcamos de marcar alguma coisa. Quando o pai dele estivesse melhor, é claro. Acho que deveria ter me oferecido para visita-lo, mas o velho sempre gostou mais de mim do que eu dele.
Despedimo-nos e não trocamos telefones. Talvez o número dele ainda fosse o mesmo. Ao chegar em casa, não sei porque, tirei o quadro da parede.
Quando um quadro passa muito tempo na parede, deixa uma marca. Como uma sombra. Ou uma luz. O contorno do quadro fez com que ele continuasse ali. Gritante. Não se passou nem uma hora antes que eu o pendurasse de novo.

Dormi logo, encarando o sol nascente. Parado. E isso era bom. Talvez ele também não soubesse o que fazer.

3 de ago. de 2013

Herança

Ele fecha a porta e respira fundo. A casa é grande, ele pensa. Têm muitas portas para serem fechadas. Graças à Deus.
A casa tem cheiro de velharia, água e poeira. Estranho seria se tivesse cheiro de qualquer outra coisa, ele pensa.
É preciso dar o primeiro passo. Desencostar-se da parede. A casa é velha. Caso se desencoste da parede, talvez a casa caia. Por um momento, ele ri.
Caminha, enfim. Pé ante pé. Como um teste de sobriedade. Z, y, x... Ele sabe até o alfabeto ao contrário. Com certeza passaria num teste de sobriedade.
Caminha e não olha para os lados. De nada adianta. Visão periférica. Maldito processo evolutivo. À sua esquerda. bem como à sua direita, eles se acumulam. Perfilados e atulhados. Com olhares de compaixão e desprezo. De rostos confusos e pálidos. Doentios. Metafóricos.
Mais uma porta se fecha. O som ecoa pelo entulho do vazio. As escadas estão à sua frente. Mais uma vez, se encosta na porta. Respira fundo. Fecha os olhos. E pode ouvi-los respirar. Cheios de remorso.
Abre os olhos e caminha. Pé ante pé. Chega até as escadas. Sem portas dessa vez.
É como se o corrimão não o sustentasse. Aos poucos os degraus tornam-se parte do passado imediato. Imediatismo contínuo.
Abre a porta. Deixara aberta a porta do quarto. Passa e a fecha imediatamente atrás de si. Pela primeira vez, não sustenta o peso da casa.
Dois passos e meio. Atira-se na cama. A cama tem gosto de pó. Fecha os olhos e finge adormecer. Aí, então, junta-se à eles. Fantasmas metafóricos.

1 de jun. de 2013

Há tempos em que o tempo não passa. Em que horas são contidas num minuto e os dias parecem correr atrás do próprio rabo.