Era fim de inverno e o frio já não doía mais nos ossos de
quem caminhava pela cidade. Por isso mesmo, resolvi voltar andando. Subia pela
praça, admirando as cores frias com as quais o último resquício da tarde
banhava a cidade. Sacola de pão de um lado, bolsa do outro, os braços não
balançavam tão soltos quanto eu gostaria. Mas a mente sim.
Esta divagava sobre o fato de a praça estar praticamente
vazia naquele instante. De as pessoas terem tanto medo da violência naquela
cidade quase segura e sobre o fato de que talvez, só talvez, a louca fosse eu.
Foi quando eu o vi.
Congelei por um instante indeterminado. Ele também parecia
estar parado, e isso era bom. Significava que ele também não sabia o que fazer.
Talvez. Havia seis ou sete passos entre nós, e ele foi o primeiro a voltar a
caminhar. Agora olhando fixamente para mim. Apertei a sacola de pão por entre
os dedos, como se isso me desse segurança. Ele já tinha dado dois passos quando
eu dei o primeiro. Estávamos agora muito próximos. Ele abriu um sorriso e eu
percebi que não conhecia aquela camisa. Depois de tanto tempo, era provável que
eu não conhecesse a maior parte do seu guarda-roupas. Sorri também. Meio débil.
Meio torta. Odiava encontrar gente na rua. Ainda mais... Agora ele tinha aberto
os braços. Sinal claro de que trocaríamos um abraço. Inclinei o corpo para a
esquerda, para que ele soubesse para onde inclinar o seu e num instante nossos
corpos estavam unidos. A não ser pelas camadas de roupa que impediam que a pele
se tocasse de fato.
Ou não. Li uma vez que nunca encostamos em alguém de fato.
Coisa de física. Ou de química. Sei lá. Os átomos exercem forças uns sobre os
outros e no fim nunca nada (nem ninguém), foi tocado de fato. Achei triste e,
durante aquele abraço, uma grande mentira. Não porque ele foi o abraço mais
apertado que eu ganhara em tempos (o que ele era), mas porque eu tinha as duas
mãos ocupadas e ele foi um tanto quanto desajeitado. Apoiava os pulsos na
jaqueta dele pra não deixar nada cair, e então nos separamos.
Ele perguntou o que eu fazia por ali e eu disse que voltava
para casa, porque não ia compartilhar aquela baboseira sobre “as cores frias
que banhavam a cidade” com ele. Não agora, pelo menos. Ele disse que deveríamos
tomar um café. Eu nunca tomei café e ele sabia disso. “Claro”, eu disse, com um
sorriso já menos tenso nos lábios.
Entramos numa confeitaria duas ruas depois e ele puxou a
cadeira para que eu me sentasse. Talvez fosse só porque eu trazia uma sacola em
uma das mãos. O que importa é que ele continuava gentil. Mas eu não pensava
isso com idealizações. Era somente uma constatação.
Mal tinha conseguido respirar quando a moça sorridente da
confeitaria apareceu de bloquinho na mão. Olhei seus cabelos loiros e
brilhantes firmemente presos enquanto pedia um suco de abacaxi.
- E pra comer?
Não sabia se deveria comer alguma coisa. Não sabia quanto
tempo aquilo deveria durar. Não queria que ele sentisse que eu o estava
segurando ali, ou que eu não queria estar ali e apressava nosso encontro não
planejado.
- Traz uma torta de limão, por favor.
Ele pediu um café de fato. Mas não um café normal. Um desses
de adulto jovem. Sabor outra coisa que não era café. Batido no liquidificador
com creme de alguma coisa. Talvez até licor tivesse dentro desses copos de café
moderno. Pediu também um sanduiche natural e eu pensei que ele não combinava
com nada daquilo.
Enfim sós. Falei que ainda trabalhava na mesma empresa, mas
tinha um cargo diferente. Agora ganhava um pouco mais e o trabalho não era tão
legal, mas também não era chato. Que finalmente tomara coragem pra dar entrada
naquele apartamento, mesmo achando, lá no fundo, que não ficaria lá por muito
tempo.
- Mas e você?
Enquanto ele falava minha atenção se dividia entre coisas
demais. A torta estava boa, mas não combinava com o suco de abacaxi. O que eu
estava pensando quando fiz aquele pedido? O que ele estava pensando quando
comprou essa camisa? Essa camisa também não tinha nada a ver com ele. Talvez
ele estivesse diferente. Não parecia. Ele tinha trocado de empresa e agora
viajava menos e ganhava mais. Sorri quando ele disse que agora tinha um carro e
me entristeci ao saber que o pai dele tinha quebrado uma perna.
- Ao menos ele se machucou jogando tênis, e não subindo uma
escada – ele não pareceu entender meu comentário. Não pareceu entender a sorte
de se machucar durante o lazer e não durante uma atividade cotidiana.
Ele continuou falando e eu continuei observando aquela cena
com certo distanciamento. Ele não tinha uma aliança na mão e eu pensei em
quantas mulheres ele havia conhecido naqueles dois anos. Pensei que as mãos
dele eram grandes e que ele gesticulava menos agora. Menos do que quando eu o
conheci.
-... e eu abri um estúdio.
Aquilo sim me pegou de surpresa.
- Bom, não um estúdio. Agora tenho um quarto pra pintar.
Passo umas horas toda semana fazendo alguma coisa lá dentro. Você devia
conhecer.
Eu devia mesmo. O primeiro presente que ele tinha me dado
era um quadro do sol nascendo em uma lagoa. Feito todo em cores quentes,
começava de um vermelho escuro e terminava num amarelo pálido. Apenas o sol e
seus reflexos na água. Era lindo.
O quadro ficou na sala por alguns meses, até que começamos a
namorar e eu o transferi para o quarto, em frente à cama. Contei que o quadro
continuava na parede e depois me arrependi. Certamente, parecia desesperado.
Parecia apego demais. Mas ele sorriu. Talvez não houvesse problema nenhum,
afinal.
Já havia se passado mais de meia hora e a noite cobria o céu
quando ele decidiu que era hora de voltar pra casa. Deixei que ele me acompanhasse
até em casa e o convidei para entrar, apenas porque era a coisa certa a fazer.
Pensei que o apartamento estava uma bagunça e eu nem mesmo tinha um cachorro no
qual colocar a culpa.
Ele recusou o convite. Graças a Deus. Eu tinha que conhecer
o estúdio dele. Marcamos de marcar alguma coisa. Quando o pai dele estivesse
melhor, é claro. Acho que deveria ter me oferecido para visita-lo, mas o velho
sempre gostou mais de mim do que eu dele.
Despedimo-nos e não trocamos telefones. Talvez o número dele
ainda fosse o mesmo. Ao chegar em casa, não sei porque, tirei o quadro da
parede.
Quando um quadro passa muito tempo na parede, deixa uma
marca. Como uma sombra. Ou uma luz. O contorno do quadro fez com que ele
continuasse ali. Gritante. Não se passou nem uma hora antes que eu o pendurasse
de novo.
Dormi logo, encarando o sol nascente. Parado. E isso era
bom. Talvez ele também não soubesse o que fazer.