22 de dez. de 2012

O primeiro adeus

Enquanto levava suas cinzas para o jardim para espalhá-las na grama, como havia decidido fazer, pouca coisa passou pela minha cabeça. Sua partida foi repentina, porém tranquila. Felizmente, não vi quando aconteceu. Não encontrei teu corpo e recebi a notícia da tua morte por escrito. Odeio telefonemas que informam um falecimento. Quando o telefone toca cedo ou tarde demais, tenha certeza. Alguém morreu. Ou vai morrer em breve.
Compareci ao teu velório discretamente vestida. Não escolhi nada de especial. Nunca sei o que usar nesse tipo de ocasião. Prendi os cabelos para o lado num rabo de cavalo. Mal me olhei no espelho e fui. Não queria falar com ninguém naquela sala. Não sei o que se conversa em um velório. Fiquei quieta num canto suficientemente escuro.
Não tive vontade de andar até o caixão. Sejamos honestos, agora não há porque mentir mesmo. Não tive coragem. Nunca tive. Andei até o caixão apenas uma vez na vida. Era pequena demais para entender aquele evento bizarro. Uma a uma as pessoas andavam até meu avô e seguravam as mãos dele. Fiz o mesmo. Suas mãos estavam geladas. Terrivelmente geladas. Depois disso, eu nunca mais andei até um caixão.
Mas voltemos ao seu velório. Cheguei perto das onze da noite e só saí na manhã seguinte. Segurando o que restou do teu corpo com força. Apertando a cerâmica contra a ponta dos dedos até que eles começassem a doer. Deixei aquele vaso estranho em cima da mesa da cozinha. Talvez soe perturbador, mas não havia muito o que fazer.
Então adormeci. Por muito tempo. O sono é um anestésico poderoso do qual eu precisava. Acordei no dia seguinte e quis almoçar. Mas você estava lá. Parado na mesa da cozinha. Decidi, cheia de culpa, ir até o shopping. Almoçar fora era como comemorar a tua morte, mas eu não estava pronta pra te encarar.
Evitei nossos restaurantes favoritos e acabei comendo panquecas frias. Não lembro do gosto. Não tinham gosto de nada. Apenas de morte.
Caminhei sozinha por entre a multidão de fim de semana, vendo meu reflexo pavoroso em cada uma das vitrines. Você não estava lá.
Abri a porta de casa e já da porta vi tuas cinzas que me julgavam silentes. Respirei fundo e tirei os sapatos. Decidi espalhar as tuas cinzas no jardim. Você não havia dito nada sobre o que fazer com elas. Como já disse, naquele momento, pouca coisa me passou pela cabeça. Teu sorriso, o timbre da tua voz... embaralhado, sem dizer nada com clareza.... e só. Naquele momento, foi tudo que eu consegui lembrar.
Tomei um susto quando coloquei os pés para fora de casa. Chovera durante a tarde e a grama estava gelada. Descalça, libertei tuas cinzas daquela prisão de cerâmica. Depois, fechei a porta. Abri a janela.
Não sei o que fazer com a urna.

16 de dez. de 2012

Amor

Como toda novidade, também começamos num mar de ansiedades. Com sorrisos tímidos de ambos os lados. O medo do desconhecido, de mostrar o que não deve ser visto...
Mas essa fase durou pouco. Logo percebi que ele recebia de bom grado tudo o que eu tinha pra mostrar. Que não julgou minhas atitudes, meus medos... nem mesmo julgou-me por minhas outras paixões. Acolheu-me silenciosamente em braços macios que pareciam capazes de envolver o mundo. E assim, protegida, deixei que ele se tornasse o centro de tudo. Assunto de todas as conversas, motivo de inúmeros conflitos com aqueles ao meu redor. As brigas foram tantas, as circunstancias tão adversas, que eu tentei deixá-lo.
Foi terrível. Só aqueles que já perderam um grande amor entenderão o que digo. Foi como arrancar do peito uma parte de si. Perder o rumo. Não. Mais que isso: perder a razão. A dor foi tão forte que dei as costas para o mundo. Voltei a procurá-lo, agora certa de que nos pertencíamos.
Ele me recebeu como se eu nunca tivesse partido e voltou a encher meus dias de uma alegria sublime. Eu o desejava todos os dias e a cada encontro me sentia mais completa.
Nossas últimas semanas foram lindas. Mágicas. Sempre estamos em meio à multidão. Sempre sós. Imersos um no outro, alheios a tudo. Com ele, sou o que quiser. Dona de uma liberdade digna de aplausos (que de fato recebo).
Essa noite foi ele quem partiu. Porque era hora. Meu coração encheu-se de uma agonia lodosa e acha que não sabe o que fazer. Mas nós nos encontraremos de novo. Logo. Ele é parte de mim e, se necessário, viro tudo do avesso pra encontrá-lo em uma esquina qualquer.
Até breve.

12 de dez. de 2012

Princesa

Primeiro, gostaria de te agradecer. Conheço bem tuas vontades e sei que gostarias de estar passeando de pés descalços no jardim. Em seguida, gostaria de te pedir perdão. Sei que já fiz mais por ti, e que cada minuto que arranco do teu tempo não volta mais.
Mas preciso ter essa conversa contigo. Por favor entenda, jamais faria nada pra te machucar. Se não trato-lhe com tanta pompa quanto teus outros súditos, é porque sabes o quão bem nos conhecemos. Que cuido de ti desde que vieste ao mundo e que não consigo me imaginar com qualquer outro trabalho neste reino.
Sinto que te devo explicações. Não penses que não entendo tuas vontades. Para ser sincera, sinto como se fossem parte de mim. E não te negaria nada. Nem um sorvete, uma tarde no parque ou um pôr de sol. Mas, infelizmente, os tempos são outros, e tuas urgências acabam ficando de lado quando comparadas à outros serviços que devo ao reino.
Veja bem, criança. Para cuidar de teus caprichos, para sustentar tua beleza, tua inocência que tanto me encanta, por vezes preciso afastar-me de ti. Mas por favor, não se sinta abandonada. Afirmo do fundo do meu coração que é somente você que faz o mundo girar. Que são seus olhos que me permitem ver o verde de nossos jardins e o azul de nosso céu. Que nada acontece sem que se tenha em mente os seus interesses. O seu sorriso. Que chegará o dia, cedo ou tarde, em que assumirá o posto de rainha, que se sentará ao trono, sorridente e de pés no chão.