Enquanto levava suas cinzas para o jardim para espalhá-las na grama, como havia decidido fazer, pouca coisa passou pela minha cabeça. Sua partida foi repentina, porém tranquila. Felizmente, não vi quando aconteceu. Não encontrei teu corpo e recebi a notícia da tua morte por escrito. Odeio telefonemas que informam um falecimento. Quando o telefone toca cedo ou tarde demais, tenha certeza. Alguém morreu. Ou vai morrer em breve.
Compareci ao teu velório discretamente vestida. Não escolhi nada de especial. Nunca sei o que usar nesse tipo de ocasião. Prendi os cabelos para o lado num rabo de cavalo. Mal me olhei no espelho e fui. Não queria falar com ninguém naquela sala. Não sei o que se conversa em um velório. Fiquei quieta num canto suficientemente escuro.
Não tive vontade de andar até o caixão. Sejamos honestos, agora não há porque mentir mesmo. Não tive coragem. Nunca tive. Andei até o caixão apenas uma vez na vida. Era pequena demais para entender aquele evento bizarro. Uma a uma as pessoas andavam até meu avô e seguravam as mãos dele. Fiz o mesmo. Suas mãos estavam geladas. Terrivelmente geladas. Depois disso, eu nunca mais andei até um caixão.
Mas voltemos ao seu velório. Cheguei perto das onze da noite e só saí na manhã seguinte. Segurando o que restou do teu corpo com força. Apertando a cerâmica contra a ponta dos dedos até que eles começassem a doer. Deixei aquele vaso estranho em cima da mesa da cozinha. Talvez soe perturbador, mas não havia muito o que fazer.
Então adormeci. Por muito tempo. O sono é um anestésico poderoso do qual eu precisava. Acordei no dia seguinte e quis almoçar. Mas você estava lá. Parado na mesa da cozinha. Decidi, cheia de culpa, ir até o shopping. Almoçar fora era como comemorar a tua morte, mas eu não estava pronta pra te encarar.
Evitei nossos restaurantes favoritos e acabei comendo panquecas frias. Não lembro do gosto. Não tinham gosto de nada. Apenas de morte.
Caminhei sozinha por entre a multidão de fim de semana, vendo meu reflexo pavoroso em cada uma das vitrines. Você não estava lá.
Abri a porta de casa e já da porta vi tuas cinzas que me julgavam silentes. Respirei fundo e tirei os sapatos. Decidi espalhar as tuas cinzas no jardim. Você não havia dito nada sobre o que fazer com elas. Como já disse, naquele momento, pouca coisa me passou pela cabeça. Teu sorriso, o timbre da tua voz... embaralhado, sem dizer nada com clareza.... e só. Naquele momento, foi tudo que eu consegui lembrar.
Tomei um susto quando coloquei os pés para fora de casa. Chovera durante a tarde e a grama estava gelada. Descalça, libertei tuas cinzas daquela prisão de cerâmica. Depois, fechei a porta. Abri a janela.
Não sei o que fazer com a urna.
Sem pé nem cabeça
Há 10 anos