A apresentação de nossa possível protagonista.Olhando à minha volta eu percebi que mais uma vez tinha nas mãos vários personagens ao redor. Enquanto verificava a situação das cabines do vagão 2, numa viagem matutina - a primeira daquele sábado de começo do inverno europeu - em direção à praia que muitos diriam ser pouco convidativa, algo na cabine 9 me chamou a atenção.
Dentro dela, sentado mais próximo do corredor estava um homem de chapéu, bigode e sobretudo preto, que lançava olhares quase que invejosos para a mulher concentrada na cabine à sua frente.
Ela vestia-se como uma corretora de imóveis, mas a seriedade de seus trajes não eram refletidos por seu rosto que trazia uma expressão serena, mergulhado no jornal. Era de uma beleza respeitável e tranquila, como tudo o que a rodeava. Mas ela estava na cabine 8, portanto não é dela que quero falar.
Na cabine 9, escondida pelo homem do chapéu, estava um par de pés inquietos que mal tocavam o chão. No chão apenas os sapatos pequenos e levemente sujos de terra.
Dos pés recobertos por uma meia calça grossa e apropriada para a estação surgia um vestido sóbrio; e deste, uma menina.
Ela tinha os olhos fixos na janela, mas não estava simplesmente apreciando as montanhas nevadas. Ela evitava todo o resto. Via o reflexo de seu rosto um pouco distorcido pela sujeira do vidro. Calculo que não tenha mais de 10 anos, talvez nove ou oito. Com certeza menos de dez.
E foi por isso que ela me fez parar. Bom, este foi um dos motivos. Com certeza ela estava sozinha. Era claro à qualquer um com o mínimo de sensibilidade.
Ela era por si só uma contradição. Apesar de estar indo à praia usando um vestidinho, era esta uma madrugada de sábado, afinal. Uma madrugada de neve.
Apesar da idade infantil ela viajava sozinha e serena. Sem querer reparar em nada. Apesar da serenidade, os pés inquietos não podiam parar de balançar.
Até que ela tirou os olhos da janela e virou-se intranquila para mim. Logo a cortina preta de seus cabelos lisos e longos fora substituída pelos grandes olhos verdes e estranhamente profundos daquela criança que negava a própria juventude. Os lábios vermelhos e grossos formavam uma linha que parecia indivisível e que combinavam perfeitamente com a pele alva.
Assim que seus olhos encontraram os meus tive de olhar para o chão. Para os sapatos lustrosos fornecidos pela companhia, onde vi de relance um borrão do que era meu rosto. Ficara claro para mim que aquela menina era apenas silêncio.