22 de ago. de 2013

Reencontro

Era fim de inverno e o frio já não doía mais nos ossos de quem caminhava pela cidade. Por isso mesmo, resolvi voltar andando. Subia pela praça, admirando as cores frias com as quais o último resquício da tarde banhava a cidade. Sacola de pão de um lado, bolsa do outro, os braços não balançavam tão soltos quanto eu gostaria. Mas a mente sim.
Esta divagava sobre o fato de a praça estar praticamente vazia naquele instante. De as pessoas terem tanto medo da violência naquela cidade quase segura e sobre o fato de que talvez, só talvez, a louca fosse eu. Foi quando eu o vi.
Congelei por um instante indeterminado. Ele também parecia estar parado, e isso era bom. Significava que ele também não sabia o que fazer. Talvez. Havia seis ou sete passos entre nós, e ele foi o primeiro a voltar a caminhar. Agora olhando fixamente para mim. Apertei a sacola de pão por entre os dedos, como se isso me desse segurança. Ele já tinha dado dois passos quando eu dei o primeiro. Estávamos agora muito próximos. Ele abriu um sorriso e eu percebi que não conhecia aquela camisa. Depois de tanto tempo, era provável que eu não conhecesse a maior parte do seu guarda-roupas. Sorri também. Meio débil. Meio torta. Odiava encontrar gente na rua. Ainda mais... Agora ele tinha aberto os braços. Sinal claro de que trocaríamos um abraço. Inclinei o corpo para a esquerda, para que ele soubesse para onde inclinar o seu e num instante nossos corpos estavam unidos. A não ser pelas camadas de roupa que impediam que a pele se tocasse de fato.
Ou não. Li uma vez que nunca encostamos em alguém de fato. Coisa de física. Ou de química. Sei lá. Os átomos exercem forças uns sobre os outros e no fim nunca nada (nem ninguém), foi tocado de fato. Achei triste e, durante aquele abraço, uma grande mentira. Não porque ele foi o abraço mais apertado que eu ganhara em tempos (o que ele era), mas porque eu tinha as duas mãos ocupadas e ele foi um tanto quanto desajeitado. Apoiava os pulsos na jaqueta dele pra não deixar nada cair, e então nos separamos.
Ele perguntou o que eu fazia por ali e eu disse que voltava para casa, porque não ia compartilhar aquela baboseira sobre “as cores frias que banhavam a cidade” com ele. Não agora, pelo menos. Ele disse que deveríamos tomar um café. Eu nunca tomei café e ele sabia disso. “Claro”, eu disse, com um sorriso já menos tenso nos lábios.
Entramos numa confeitaria duas ruas depois e ele puxou a cadeira para que eu me sentasse. Talvez fosse só porque eu trazia uma sacola em uma das mãos. O que importa é que ele continuava gentil. Mas eu não pensava isso com idealizações. Era somente uma constatação.
Mal tinha conseguido respirar quando a moça sorridente da confeitaria apareceu de bloquinho na mão. Olhei seus cabelos loiros e brilhantes firmemente presos enquanto pedia um suco de abacaxi.
- E pra comer?
Não sabia se deveria comer alguma coisa. Não sabia quanto tempo aquilo deveria durar. Não queria que ele sentisse que eu o estava segurando ali, ou que eu não queria estar ali e apressava nosso encontro não planejado.
- Traz uma torta de limão, por favor.
Ele pediu um café de fato. Mas não um café normal. Um desses de adulto jovem. Sabor outra coisa que não era café. Batido no liquidificador com creme de alguma coisa. Talvez até licor tivesse dentro desses copos de café moderno. Pediu também um sanduiche natural e eu pensei que ele não combinava com nada daquilo.
Enfim sós. Falei que ainda trabalhava na mesma empresa, mas tinha um cargo diferente. Agora ganhava um pouco mais e o trabalho não era tão legal, mas também não era chato. Que finalmente tomara coragem pra dar entrada naquele apartamento, mesmo achando, lá no fundo, que não ficaria lá por muito tempo.
- Mas e você?
Enquanto ele falava minha atenção se dividia entre coisas demais. A torta estava boa, mas não combinava com o suco de abacaxi. O que eu estava pensando quando fiz aquele pedido? O que ele estava pensando quando comprou essa camisa? Essa camisa também não tinha nada a ver com ele. Talvez ele estivesse diferente. Não parecia. Ele tinha trocado de empresa e agora viajava menos e ganhava mais. Sorri quando ele disse que agora tinha um carro e me entristeci ao saber que o pai dele tinha quebrado uma perna.
- Ao menos ele se machucou jogando tênis, e não subindo uma escada – ele não pareceu entender meu comentário. Não pareceu entender a sorte de se machucar durante o lazer e não durante uma atividade cotidiana.
Ele continuou falando e eu continuei observando aquela cena com certo distanciamento. Ele não tinha uma aliança na mão e eu pensei em quantas mulheres ele havia conhecido naqueles dois anos. Pensei que as mãos dele eram grandes e que ele gesticulava menos agora. Menos do que quando eu o conheci.
-... e eu abri um estúdio.
Aquilo sim me pegou de surpresa.
- Bom, não um estúdio. Agora tenho um quarto pra pintar. Passo umas horas toda semana fazendo alguma coisa lá dentro. Você devia conhecer.
Eu devia mesmo. O primeiro presente que ele tinha me dado era um quadro do sol nascendo em uma lagoa. Feito todo em cores quentes, começava de um vermelho escuro e terminava num amarelo pálido. Apenas o sol e seus reflexos na água. Era lindo.
O quadro ficou na sala por alguns meses, até que começamos a namorar e eu o transferi para o quarto, em frente à cama. Contei que o quadro continuava na parede e depois me arrependi. Certamente, parecia desesperado. Parecia apego demais. Mas ele sorriu. Talvez não houvesse problema nenhum, afinal.
Já havia se passado mais de meia hora e a noite cobria o céu quando ele decidiu que era hora de voltar pra casa. Deixei que ele me acompanhasse até em casa e o convidei para entrar, apenas porque era a coisa certa a fazer. Pensei que o apartamento estava uma bagunça e eu nem mesmo tinha um cachorro no qual colocar a culpa.
Ele recusou o convite. Graças a Deus. Eu tinha que conhecer o estúdio dele. Marcamos de marcar alguma coisa. Quando o pai dele estivesse melhor, é claro. Acho que deveria ter me oferecido para visita-lo, mas o velho sempre gostou mais de mim do que eu dele.
Despedimo-nos e não trocamos telefones. Talvez o número dele ainda fosse o mesmo. Ao chegar em casa, não sei porque, tirei o quadro da parede.
Quando um quadro passa muito tempo na parede, deixa uma marca. Como uma sombra. Ou uma luz. O contorno do quadro fez com que ele continuasse ali. Gritante. Não se passou nem uma hora antes que eu o pendurasse de novo.

Dormi logo, encarando o sol nascente. Parado. E isso era bom. Talvez ele também não soubesse o que fazer.

3 de ago. de 2013

Herança

Ele fecha a porta e respira fundo. A casa é grande, ele pensa. Têm muitas portas para serem fechadas. Graças à Deus.
A casa tem cheiro de velharia, água e poeira. Estranho seria se tivesse cheiro de qualquer outra coisa, ele pensa.
É preciso dar o primeiro passo. Desencostar-se da parede. A casa é velha. Caso se desencoste da parede, talvez a casa caia. Por um momento, ele ri.
Caminha, enfim. Pé ante pé. Como um teste de sobriedade. Z, y, x... Ele sabe até o alfabeto ao contrário. Com certeza passaria num teste de sobriedade.
Caminha e não olha para os lados. De nada adianta. Visão periférica. Maldito processo evolutivo. À sua esquerda. bem como à sua direita, eles se acumulam. Perfilados e atulhados. Com olhares de compaixão e desprezo. De rostos confusos e pálidos. Doentios. Metafóricos.
Mais uma porta se fecha. O som ecoa pelo entulho do vazio. As escadas estão à sua frente. Mais uma vez, se encosta na porta. Respira fundo. Fecha os olhos. E pode ouvi-los respirar. Cheios de remorso.
Abre os olhos e caminha. Pé ante pé. Chega até as escadas. Sem portas dessa vez.
É como se o corrimão não o sustentasse. Aos poucos os degraus tornam-se parte do passado imediato. Imediatismo contínuo.
Abre a porta. Deixara aberta a porta do quarto. Passa e a fecha imediatamente atrás de si. Pela primeira vez, não sustenta o peso da casa.
Dois passos e meio. Atira-se na cama. A cama tem gosto de pó. Fecha os olhos e finge adormecer. Aí, então, junta-se à eles. Fantasmas metafóricos.