Primeiro veio o vento. Como uma brisa, quase imperceptível. Depois veio a chuva. De início uma garoa, que ficou cada vez mais forte. Tornou-se tempestade interminável. Choveu por dias e dias. Semanas. Meses. Aos poucos, a casa encheu. E a água turva apodreceu as paredes. Levou-as embora.
Por fim, a água da chuva encontrou o rio, e nessa enchente improvável, impossível, a correnteza acabou por me levar também. Pra longe. Não sei onde. A água encharcou os cabos e a cidade estava sem luz.
Quando finalmente escapei do frenesi da correnteza, caminhei. Até lugar nenhum, lugar vazio. Sentei-me sob uma árvore e esperei. Dias e dias.
O sol saiu e resolvi que era hora de voltar. Caminhei a esmo, procurando um ponto de referência conhecido, a fim de encontrar meu lar. Levou quase uma semana. O que importa é que cheguei.
A uma estrutura depenada e lamacenta. Num bairro vazio, onde seres desolados se apinhavam a procura de restos e migalhas num silêncio pesaroso. Entre eles, tão só quanto todos nós, constatei que não havia quase nada.
Debaixo de uma pilha de entulho, uma carcaça putrefata e quase irreconhecível. Uma promessa. Olhos certos em olhos chorosos. Corpos nus - ou quase isso. Mãos trêmulas entregues em mãos incertas. O aperto consolador do que restava das forças.
- Eu nunca vou embora.
- Promete?
- Nem se você quiser que eu vá.
Então, veio o vento.
Sem pé nem cabeça
Há 10 anos