Perdidos na sala grande – que sempre foi a mesma – se entreolham. Depois, quase ao mesmo tempo, olham para mim.
Por que eu deveria ter todas as respostas?
A história era deles, afinal. O fato de eu os ter posto lá não significava nada. Assim como aquele piano ridículo perto da janela. Ninguém alí tocava piano.
Ao contrário daqueles sapatos. Pretos, salto alto, bico fino. Casualmente jogados ao lado do sofá branco. Estavam lá por três motivos: davam verdade à casa; contrastavam perfeitamente com os móveis e, principalmente, nem entravam nos pés da moça.
Que não estava no sofá. Encarava-me com muita certeza. Sabia que eu estava lá. Mas não deveria.
Nossa relação não era nem mesmo profissional. Sempre funcionou assim: eu propunha uma situação, eles viviam. Eu relatava. Ela nunca chegou a me encontrar. Ele nunca teve interesse.
Gostava mais dela do que dele. Ela me lembrava de alguém. Talvez eu mesma, apesar de possuir uma postura invejável que jamais tive. Ele também não me era estranho. Alguma coisa no jeito de olhar.
Agora ele me olhava também, um tanto indiferente. Se não o conhecesse tão bem, provavelmente ficaria assustada. Não era o caso, e parte de mim queria confortá-lo, porque sabia que ele estava com medo. Mas aquele não era o meu trabalho.
Primeiro me livrei do teto. Não fazia diferença naquela noite estrelada, e talvez iluminasse um pouco a existência apagada daquele casal. Depois, com cuidado, me livrei das louças do jantar. Dos pratos brancos e sem ornamentos que escolhi para eles. Achei que combinavam com ele.
Os dois esboçavam alguma reação e resolvi lhes dar um tempo. Por respeito, medo e pena. Esvaziei o resto da casa, mas deixei o quarto intacto. Se algo sobraria da história, estava lá. A cama grande, as velas na penteadeira, a foto em preto e branco no criado mudo.
Sempre gostei daquela foto. Era casual. Os dois eram cúmplices num sorriso natural difícil de se conseguir num retrato.
Voltei para a sala e mandei que os ajudantes se livrassem da mesa e das cadeiras. Os donos da casa assistiam inertes. Depois, a tv. Os livros. A lareira charmosa, que fora acesa até mesmo em noites de verão. As cortinas, encardidas onde tocavam o chão. O piano. (Que tirei de lá com minhas próprias mãos.) A mesa de centro. Chutei para um canto os sapatos e deixei que carregassem o sofá.
Também não pude me livrar do tapete. Ela adorava aquele tapete... Poderia dormir naquele tapete. Branco e felpudo, deveria incomodar muito as alergias dele. Continuaria alí.
Para ele, deixei os cds. E um livro que decidi ser seu favorito.
Me livrei de suas roupas. Daquelas de seus corpos mesmo. Sei que é cruel, mas deveriam sair daquela casa da forma mais neutra possível.
Joguei fora seu vestido, mas guardei a camisa dele. Gostava daquele cheiro.
Me despedi num olhar, mas ele buscou minhas mãos. Puxei um abraço que julguei inapropriado, porém merecido. Agora estavam livres. E sós. Suas vidas já não dependiam de mim, como ele sempre desejara.