Gabriel era poeta e quando nos apaixonamos ele me ensinou a identificar os textos que me dedicava por um sinal discreto: a primeira letra inclinada para a direita. Durante anos recebi versos de carinho marcados por nosso sinal.
Quando a guerra veio, ele foi convocado e tivemos de nos separar. Seu trabalho era enviar notícias das tropas ao restante do país. Enaltecer a nação e comunicar falecimentos. Seus relatórios eram publicados todo domingo, numa coluna espremida no jornal.
Sempre tinham a primeira letra inclinada, indicando de forma discreta o amor que tinha por mim.
A guerra demorou a ter fim, e Gabriel não voltou. Virou estudante na Europa e depois consagrou-se como escritor. Casou-se com uma espanhola com a qual teve um par de filhos.
Tenho aqui em casa tudo que ele já publicou. Das notas de falecimento aos grandes romances. Em seus livros, iniciais inclinadas sem motivo aparente me trazem aos lábios um sorriso amargo.
"Ele não me esqueceu", diz o coração que ignora o fato de sua partida.
Mas já passaram-se tantos anos que a explicação mais provável é a de que eu tenha enlouquecido. É o que parece achar Tobias que, melancólico, encosta a cabeça em meus joelhos e me encara preocupado toda vez que me vê com um livro na mão.
Sem pé nem cabeça
Há 10 anos