"Quantos anos você acha que ela tem?", perguntou-me o cobrador depois de conversar um pouco com a senhora que lhe entregara um bombom e carregava uma sacola da qual despontava uma rosa.
Esquivei-me da pergunta com o argumento nem tão sincero e nem tão falso de que era péssima em estimar esse tipo de dado.
"Mais de oitenta", ela confessou com um brilho incomparável nos olhos. Mais tarde confirmei o número exato: oitenta e três. E realmente me surpreendi. Lhe daria setenta, no máximo setenta e dois.
Quando o ônibus chegou, dividi-me entre a educação e o impulso natural de me afastar e assim evitar uma conversa. Mantendo uma distância amigável, sentei-me paralelamente a ela, do outro lado do corredor, ainda esperando ser deixada em paz.
Mas ela ajeitou-se no banco de forma a ficar de frente pra mim, e eu acabei desistindo de não lhe dar atenção. Ela falava com uma voz doce e alegre. Aveludada demais para a idade que alegava.
Começou dizendo que amava a todos, e que era uma pessoa especial. Que agora eu era parte de sua família. Dirigindo-lhe um comentário clichê, disse que aquilo era maravilhoso, que amar nos fazia viver mais e melhor. Depois decidi deixá-la falar. E prestar atenção.
A senhora falou-me do poder do "Eu Sou", de como eu poderia ser o que quisesse desde que acreditasse. Que Deus não estava lá fora, e sim dentro de mim. Abri um sorriso sincero que ela percebeu. No fundo, eu concordo mesmo com ela.
Então ela passou para a própria história. Uma história que já era confusa por si só, mas que tornava-se ainda mais complicada por causa do barulho ao nosso redor. Me disse que fazia milagres. Que havia morrido e voltado à vida numa cama de hospital.
Que passeou pela Praça dos Artistas em Paris, onde dezenas de pessoas cantavam Noite Feliz. Que tinha feito um violino cantar. Certa vez fora desafiada por um grande maestro a realizar tal façanha. E o fez. "Eu faço milagres", repetiu sorridente.
Contou que cantava num shopping ao lado de um pianista presunçoso, que não aceitava dividir o palco com ela. Certa vez tomou coragem e subiu no palco. Tocou seu piano e provou-se melhor que ele. Dalí em diante, teve o palco para si. O pianista orgulhoso nunca mais aparecera.
Era difícil distinguir realidade e fantasia. Talvez não para ela, mas para mim. Entre uma história e outra ela cantava com uma voz angelical, quase impossível, que fazia com que aquilo ganhasse vida diante de mim.
Disse que criara bailarina antes do Bolshoi. Que pintara cenários maravilhosos, os mais lindos que já vira. Definiu-se como escritora, filósofa, pintora e bailarina. Que havia sofrido muito na vida, mas que tinha feito de tudo. Fez tudo até os oitenta anos. Agora não. Não fazia mais milagres e não mudava mais o mundo. Não queria mais saber do mundo. Apenas espalhava sua energia, que aliás, segundo ela, havia sido estudada nos Estados Unidos.
Entre a loucura e a lucidez, ela tinha o equilíbrio perfeito para alcançar a felicidade. E sabia muito mais do que se podia prever.