19 de ago. de 2011

Diário Inconclusivo de uma Perseguição

Cá entre nós, você pode me revelar qualquer coisa. Nessa relação disfarçada de unilateral, nenhum segredo revelar-se-á. Digo isso de minha parte, mas bem lá no fundo, eu espero o mesmo de você.
Diga-me, você já se sentiu perseguido?
Espere antes de responder. Aqui não vale nenhuma história de pais vigilantes ou qualquer bobeira de ex-namorada. Me refiro à perseguição real e silenciosa, que rouba até mesmo o refúgio de seus pensamentos. Sem alarde, com um olhar quase natural.
Por toda essa descrição você pode deduzir que sim, isso já aconteceu comigo. E é provável que ainda aconteça.

Não sei bem há quanto tempo ela apareceu. A notei num fim de tarde de garoa, nem sei bem como, já que seus pés não faziam questão de emitir qualquer som ao tocar o chão.
Seu disfarce não era nada discreto. Tinha um sobretudo vermelho e meias azuis. Andava com sapatilhas de balé. Brancas ou de um rosa pálido, não sei bem ao certo. Não passava de 1m15cm. Tinha lábios finos e retos, a pele de um amarelado quase doentio e olhos acinzentados puxando para o azul. Não era das mais cuidadosas com a própria aparência. A sapatilha desbotada tinha poeira acumulada em suas ranhuras e os cabelos louros na altura dos ombros eram levemente desgrenhados.
Andava a menos de um metro de mim e me observava como se aquela fosse sua função. Me perseguia a todo lugar e por vezes eu lhe dei a mão. Sem opção, diariamente lhe dei abrigo e deixei que meu olhar curioso a alimentasse. De nada serviu tudo isso. Ela jamais me dirigiu a palavra. Talvez seja muda.
-
Com certeza não é surda, e não é nenhum exemplo de empatia. Por todo esse tempo ela ouviu cada um de meus pensamentos. Conheceu e julgou cada intenção, cada gesto, cada verdade e cada mentira. Foi implacável e por vezes me mostrou seu sorriso. Completo e de dentes de leite.
Ninguém a notava. Ninguém censurava em nome da criança que estava presente. Eu nunca tive a opção de fazê-lo.
-
Não faz nem uma semana que eu criei coragem. Contei a ela que sabia que ela estava alí. Como se ela já não soubesse. Ação inútil, concordo. Mas era importante reconhecer. Abrir o jogo.
Ela infelizmente pareceu não se importar. Não se moveu. Não se desculpou. Não respondeu nem mesmo com o olhar.
-
Há três dias eu estourei. Não me julgue. Você jamais entenderia o incômodo daquela presença constante. Da vigilância 24 horas. Do julgamento.

Surtei e lhe atirei todos os livros. Talvez na esperança de lhe dar palavras. Criar uma discussão. Uma briga, um acordo de paz.
Nada. Ou quase nada. Há três dias, ela afastou-se um pouco de mim. Um único passo para trás. Uma conquista.
Agora ela tenta se esconder, mas não acredito que tenha partido. Ainda sinto o peso de seus olhos e não mais tento entender o que ela veio buscar. No meio dessa angústia, por vezes eu lhe dou a mão.