Da porta de casa ao meu destino, conto exatos e completos 390 passos. Uma métrica perfeita. Ouço do lado de fora, o ônibus que passa apressado. Eu não. É hora de sair e eu ando devagar, mas à passos largos. Passo com cuidado pelo portão.
Depois da terceira casa, olho para trás. Volto-me para frente, olho para o céu. Continuo andando. Passa pela esquina outro ônibus, de rota diferente. No mesmo horário. Tudo vai bem.
Atravessar a rua, passar pela menina e a mãe; a menina na cadeira de rodas, a mãe fumando um cigarro ao lado da criança. Tudo vai bem.
Chegar ao meu destino, recostar onde possível. Ver passar por mim o transporte escolar, o furgão branco. Agora faltam poucos segundos para a chegada de meu acompanhante de destino. Ele vira a esquina, como esperado, passa por trás de mim. Para em minha diagonal. Meu ônibus chega, 1 minuto e meio depois. Preciso.
Dar bom dia ao motorista, sorrir ao cobrador (não tão bem humorado), sentar, e esperar chegar.
Minha confortável rotina matinal. Repetida com fidelidade e poucas falhas nos últimos 3 meses. Sim. Rotina. Coisas da velha ranzinza e acomodada que mora em mim.
Pessoas me notam diferente, pensativa. Nada dizem seus lábios, mas eu noto por seus olhos, variando entre a curiosidade e a estranheza. E eis a razão.
São 4 minutos. O primeiro ônibus, que me leva a sair de casa, agora passa 4 minutos mais tarde. Terrível. Alterou todo o sistema.
Ando mais depressa, esqueço de olhar para trás. O segundo ônibus passa por mim antes que eu esteja no lugar apropriado. Evito correr, finjo que tudo está bem. Atravesso a rua enquanto passa o furgão branco. Tento virar para ver, mas é tarde demais. A mãe e a menina não estão à beira da calçada.
Com esforço, recosto em meu lugar habitual. Espero pela passagem do transporte escolar, e noto uma nova rota. Ao menos meu acompanhante chega na hora certa. Para no lugar exato. Imagino que seu velho interior também esteja tentando continuar a viver.
O ônibus demora 5 minutos a mais. O motorista é alegre demais. Tão alegre que não tive a chance de analisar melhor as manias do cobrador. Não me preocupo em sentar.
E esses 4 minutos fazem com que eu tenha que correr. Com que eu quase quebre meu braço no segundo ônibus. Com que eu ande sozinha até a entrada de meu destino final. Que tenha que procurar pelos outros. Tudo totalmente fora de lugar.
Amanhã, para o descontentamento de minha velha interior, começarei uma nova rotina. Não verei mais o furgão branco, a menina e a mãe, tão pouco olharei para trás. Um fragmento de vida nova. Na tentativa de fazê-la como a antiga. De voltar a ser quem deveria.
Sem pé nem cabeça
Há 10 anos